quinta-feira, 17 de março de 2016

Do campo para a cidade



A utilização das plantas quer para fins alimentares quer medicinal, é quase tão antiga como o próprio homem. Embora o seu uso medicinal seja habitualmente conotado com práticas mais ou menos obscurantistas, que persistem, sobretudo no bucólico da ruralidade, as plantas não servem apenas para tratar as maleitas dos nossos camponeses. Nas grandes cidades, apesar de muito deste patrimônio cultural se ir desvanecendo, assistimos na atualidade a um regresso às origens, em busca daquilo que a terra nos dá. Prova disso é que não haverá casa portuguesa sem o cantinho das ervas: a erva-cidreira para as perturbações gástricas, a tília para febres e doenças hepáticas, a camomila para a gripe, entre muitas outras que cada um escolhe a seu bel-prazer.

Muitas das mézinhas das nossas avós, a que é usual chamar “medicina tradicional”, “natural” ou “verde”, coexistem, afinal, com a medicina convencional, dos médicos, na qual abundam cock­tails químicos injetáveis, xaropes industriais e drágeas de todas as cores e feitios.

Ainda que não haja dados estatísticos sobre o número de pessoas que recorrem à medicina natural, uma vez que se trata de autoconsumo e não são necessárias receitas médicas para este gênero de terapia, pensa-se que a naturopatia está em crescendo. São cada vez mais os adeptos da medicina verde. Em suma, quando o objetivo é acalmar a alma, fortalecer o corpo e aliviar a dor, ninguém se importa de onde vem o remédio, desde que se revele eficaz.



Formas sugestivas

Não é difícil imaginar por que razão algumas plantas começaram a ser utilizadas como curandeiros. Basta olhar para elas. As suas formas sugestivas, imitando órgãos do corpo humano, terão despertado a curiosidade e levado ao seu emprego na cura das maleitas a eles associadas. Estas crenças originaram, nos séculos XVI e XVII, a chamada “doutrina das assinaturas”, segundo a qual Deus teria indicado as virtudes de cada planta dando-lhe uma forma similar ao órgão sobre o qual atuava. Por exemplo, os tubérculos de certas orquí­deas, que se assemelham aos testículos humanos, possuiriam propriedades afrodisíacas, e as folhas das hepáticas, em forma de fígado, seriam indicadas para os problemas relacionados com esse órgão. Ou então, dando-lhe um aspeto idêntico aos sintomas externos de determinada doença (as ervas com seiva amarela, como a Caledônia, eram utilizadas no tratamento da icterícia, o feto polipódio era usado para curar a varicela, pois os seus esporângios, situados na página inferior das folhas, assemelham-se às pústulas originadas por essa doença). Embora nem sempre se verificasse a tão almejada cura, cedo se percebeu que quase todas as plantas possuíam propriedades medicinais, que compuseram o vasto leque de conhecimentos empíricos legados às gerações vindouras.

A doutrina das assinaturas estendeu-se de igual modo aos fungos: o exemplo mais conhecido é o do cogumelo porra-de-lobo ou picha-de-cão (Phallus impudicus), ao qual, devido à sua forma idêntica ao pénis humano, foram também atribuídas propriedades afrodisíacas. Entre os líquenes, destaca-se a pulmonária (Lobaria pulmonaria), que foi largamente utilizada no tratamento das úlceras pulmonares, em virtude da sua semelhança com um pulmão.

Embora estas crenças nos possam parecer ridículas no presente, é compreensível que, na antiguidade, se tenha entendido as formas das plantas semelhantes a órgãos como sinais divinos. Em pleno século XXI, muitos camponeses sem a influência dos ensinamentos escolares e dos conhecimentos científicos continuam a vê-las como tal.


                                                              Curar sem químicos?

A utilização das plantas com propósitos medicinais vem de há longa data; no entanto, o papel fundamental que lhes era atribuído na medicina da Idade Média foi-se desvanecendo com os avanços científico-tecnológicos da era moderna. Hoje em dia, muitos dos seus princípios ativos já são sintetizados artificialmente, através da biotecnologia a que recorre a indústria farmacêutica. Apesar disto, ainda existe uma considerável percentagem de medicamentos prescritos pelos médicos que resulta da utilização direta de plantas, sobretudo quando a síntese artificial do princípio ativo não é conseguida ou não é economicamente favorável.

Segundo o Decreto-Lei 176/2006, é definido como medicamento à base de plantas “qualquer medicamento que tenha exclusivamente como substâncias ativas uma ou mais substâncias derivadas de plantas, uma ou mais preparações à base de plantas ou uma ou mais substâncias derivadas de plantas em associação com uma ou mais preparações à base de plantas”.

Permanece, contudo, o preconceito de que as ervas medicinais recolhidas na natureza são boas para a saúde porque não têm químicos, o que não é verdade. A razão por que são usadas para fins curativos é exatamente porque possuem determinadas substâncias químicas que vão influenciar a fisiologia do organismo. Eduardo Ribeiro, biotecnólogo e especialista em suplementos alimentares e plantas medicinais, lembra que “uma planta medicinal é constituída por um complexo conjunto de moléculas com efeitos fisiológicos comprovados, mas cuja ação ao nível do organismo não é facilmente percecionada”.

Através do seu metabolismo, quase todas as plantas conhecidas produzem substâncias com propriedades medicinais ou odoríferas, como esteróides, alcalóides, óleos essenciais, taninos, vitaminas, elementos minerais e antibióticos, entre muitas outras. Dito de outro modo, possuem determinado princípio ativo que lhes confere valor terapêutico. Por isso mesmo, terão sido empregadas, de acordo com estudos antropológicos, desde o Paleolítico, embora os vestígios farmacêuticos mais antigos nos tenham chegado das civilizações mesopotâmica e egípcia.


Para além da utilização que se vai fazendo das plantas, principalmente pelos habitantes das zonas rurais e pelos clientes da naturopatia, a indústria farmacêutica não deixa de procurar novas propriedades curativas nas plantas silvestres. Embora a medicina convencional não reconheça completa validade terapêutica à naturopatia, é absurdo desprezar alguns tratamentos centenários da medicina popular, muitos deles com eficácia comprovada. Quem nunca bebeu chá de camomila como calmante, tomou mel com limão para curar as dores de garganta, bebeu chá de cidreira para as dores de estômago ou tomou xarope de cenoura para a tosse? Quantas vezes as mézinhas de fabrico caseiro, passadas de geração em geração, fazendo parte da identidade cultural de um povo, solucionam os problemas de saúde e restabelecem o bem-estar, sem necessidade de apoio médico? Muitas dessas receitas caseiras podem ainda ser ouvidas da boca dos sábios rostos enrugados pelos anos, em qualquer das muitas aldeias de Portugal, que teimam em manter vivos os costumes e tradições.

No entanto, embora use produtos naturais culturalmente muito interessantes, a verdade é que a medicina natural pode apresentar alguns riscos, nomeadamente quanto ao controlo de qualidade, à utilização indevida e aos efeitos secundários em determinadas doenças, como avisa Elsa Gomes, professora aposentada da Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa.

Em muitos casos, a medicina convencional coexiste com as medicinas popular e alternativa. Os doentes, consoante os resultados obtidos com os tratamentos, dividem a sua crença entre médicos e “curandeiros”, “endireitas”, “sábios”, “bruxas” e “homens de virtude”. Apesar de os efeitos farmacológicos de muitas mézinhas estarem ainda por investigar e comprovar, a medicina moderna vai aprendendo a conviver com alguns desses remédios populares; de facto, quando a medicina ainda dava os primeiros passos, já o povo tinha remédios para a maior parte das maleitas.


“A elaboração de remédios caseiros está também hoje em dia facilmente acessível via internet, sendo possível aprender como fazê-los e quais as suas indicações.” Quem o afirma é o médico Luiz Santiago, autor de Medicamentos e Corpo – Consumidores de Fármacos: o que Pensam e o que Sabem... “No entanto, dose e posologia são duas grandes lacunas que se observam, quando consultada a informação”, alerta.

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